Por José Abílio Coelho*
A primeira década do hospital
- A obra mais querida
No dia de S. João, 24 de junho de 1927, menos de meio ano antes de partir desta vida, António Lopes assinou, perante o notário lisboeta António Tavares de Carvalho, dois testamentos distintos e longos: um para os bens que possuía em Portugal e outro para os que detinha no Brasil. Por ambos os documentos – premiando embora, em alguns casos fartamente, familiares, empregados e amigos, bem como várias instituições portuguesas e brasileiras, da Misericórdia do Porto à do Rio de Janeiro, do seminário de Braga à então recém-criada paróquia de Nossa Senhora do Amparo, no seu concelho natal – fazia do hospital o maior de todos os seus herdeiros, distinguindo-o ainda como obra de vida, ao pormenorizar as razões pelas quais o fundara e ao referir-se-lhe, ao longo da sua expressão de última vontade, por 22 vezes.
Viúvo, sem filhos e em idade avançada para o tempo (andava pelos 72 anos quando a casa de saúde foi inaugurada e contava mais dez quando faleceu), o hospital fora, e continuava a ser quando outorgou os testamentos, a sua paixão maior; a “Domus Caritates” (como o próprio fez pintar na parede interior que dá acesso ao salão nobre do edifício) que lhe permitia fazer o bem a quem mais precisava, amparando os deserdados da sorte, dando proteção àqueles a quem faltava a saúde e os meios para se tratarem.
Recorde-se que a unidade de saúde era a única instituição concelhia a prestar assistência na saúde aos quase 20 mil habitantes que então residiam nas 28 freguesias do município. Além disso, inaugurado a 5 de setembro de 1917 por ser a data do aniversário natalício de sua mulher D. Elvira Câmara Lopes, o hospital permitia-lhe recordar a companheira de toda a vida, a “amantíssima esposa” que, em vida, tantas vezes lhe pedira que construísse aquela estrutura para os pobres da terra. Numa crónica publicada logo após a sua morte no semanário local “Maria da Fonte”, o escritor Campos Lima deixava testemunho do amor que António Lopes tinha pela obra em que o seu hospital se transformara, ao afirmar que o “brasileiro” das Casas Novas ali se deslocava todos os dias, sempre que se encontrava na Póvoa de Lanhoso, para, pessoalmente, aferir a qualidade do atendimento prestado aos que nele procuravam auxílio. “Um hospital modelar em que os doentes não desejavam que lhes dessem alta, para continuarem sempre tratados com todos os cuidados e carinhos que muitos d’eles não podiam ter na sua própria casa”, rematava o mesmo cronista.
Na construção do edifício e na sua dotação de mobiliário, material médico, peças de arte, jardins e espaço religioso, tinha gasto António Lopes cerca de 150 contos de réis. Bem mais que os 8 contos que, três lustros antes, tinha despendido com a edificação do Theatro Club. Mas a manutenção da unidade de saúde em sua vida, entre 1917 e 1927, levou-lhe do bolso muito mais dinheiro que a sua construção e dotação de recheio. Só no ano de 1927, o único para o qual temos contabilidade completa, os custos de funcionamento elevaram-se a mais de 80 contos. Vivia-se em Portugal um período difícil. O país não se tinha recuperado ainda da participação na I grande guerra e a instabilidade que surgira nos anos finais da I República não ajudava em nada a que os preços não disparassem. Num concelho rural do interior minhoto onde a população vivia maioritariamente da agricultura e afins, a necessidade fazia sentir em todos os aspetos, e muitas famílias subsistiam na mais completa miséria. Por um conjunto de fichas clínicas existentes no Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso, sabemos que muitos dos que eram internados no hospital tinham inscrito, no local destinado ao diagnóstico, uma única palavra: “Fome”. Assim se entende o que Campos Lima escreveu e atrás transcrevemos. Como se entendem as razões pelas quais António Lopes era considerado pelos seus conterrâneos como uma espécie de Deus vivo.
- Alguns números
Entre 1917 e 1927 os serviços administrativos do hospital contabilizaram mais de 25 mil atendimentos gratuitos. Entre estes, destacavam-se 2.197 hospitalizações (cerca de 180 hospitalizações ano, uma média de 15 hospitalizações/mês), 7.608 consultas externas e 15.641 curativos, dispensados no banco. Ficamos ainda a saber que, no tocante aos internamentos, no caso dos homens foram os jornaleiros (240), os criados (155) e os que não tinham “profissão definida” (135), os que ali entraram em maior número, ao passo que no concernente às mulheres as maiores beneficiadas foram as domésticas (433) e as criadas (197), cujos números se destacam de todas as restantes ocupações ou profissões. É também significativo o número de mendigos internados gratuitamente nos dez anos em apreço: 50 homens e 35 mulheres.
Entre os internados contavam-se muitos doentes que tinham sido alvos de cirurgias, dado que o hospital se encontrava dotado de um bloco cirúrgico, apontado à época como um dos mais modernos que existiam em unidades da mesma dimensão. Refira-se também a existência de uma maternidade, onde entre 1917 e ao longo das cinco décadas seguintes, nasceram milhares de povoenses.
Aquando na Póvoa de Lanhoso, ou a partir de Lisboa, onde residia a maior parte do ano, no seu palacete da Avenida da Liberdade, António Lopes fazia dotações regulares ao hospital, a partir dos dados que lhe eram fornecidos pelo seu sobrinho e diretor administrativo da casa, João Albino de Carvalho Bastos. Anos mais tarde, quando já em posse da Misericórdia, era muitas vezes referido nas atas que o hospital devia continuar a servir os que a ele recorriam com a mesma qualidade com que o fazia nos tempos do fundador.
O filantropo povoense morreu em Lisboa, em 22 de dezembro de 1927. Como se imaginará e pelo que foi antes referido, as suas disposições testamentárias fizeram abrir bocas de espanto, tais as “liberalidades” com que, para além de familiares, empregados e amigos, prendava a sua terra natal.
Mas sobre o seu testamento, como sobre as suas dádivas à terra da Póvoa de Lanhoso, onde nascera na freguesia de Fontarcada em 14 de abril de 1845, falaremos em artigo próximo.
*Historiador. Coordenador do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso
----------------------------------------------